Sobrevivência da Empresa Privada Especializada na Área da Preservação Cultural
Maria Regina Reis Ramos
Rosângela Reis Costa
Grupo Oficina de Restauro Ltda.
A partir de nossa experiência como empresa privada na área de preservação cultural, abordaremos aqui não só as características técnicas desse trabalho como também as relações das instituições oficiais de patrimônio histórico e cultural com a esfera privada e a crescente participação de organizações comunitárias e instituições não estatais na proteção de nossos legados culturais.
No caso específico do Grupo Oficina de Restauro Ltda. a iniciativa de montar uma firma privada se deu em 1987, quando se evidenciou a política do governo em falir os órgãos públicos com baixos salários e o total descaso pelas instituições, em geral, principalmente na área da cultura. Havia ainda uma necessidade de pessoal especializado em condições de atender a demanda das grandes obras, como fora observado em nossa experiência de 10 anos, em projetos, execução e fiscalização de trabalhos de restauração, em instituições estaduais, seja na Bahia ou em Minas Gerais. As dificuldades foram e são enormes, como no primeiro momento a necessidade de impor uma política de mercado e ainda concorrer com grandes empresas de engenharia que absorviam os trabalhos de conservação e restauração dentro das grandes obras, sem respeito às especificidades inerentes ao processo de recuperação de obras de arte e nem ao profissional especializado.
Ainda hoje, devido à falta de recursos dos órgãos competentes, não se pode contar com um planejamento interno de trabalho, em virtude da instabilidade com que ocorrem as ofertas de mercado, da forma de distribuição das obras ou ainda dos poucos recursos disponíveis. Atualmente temos contado com a crescente organização das comunidades que, por motivo de força maior, estão se conscientizando da necessidade de abandonar o paternalismo estatal e partindo para a formação de associações sem fins lucrativos, que podem angariar recursos de variadas formas. Por outro lado, as grandes empresas também estão assumindo seu papel político-social, financiando obras e projetos em todos os setores da sociedade, principalmente nas localidades onde elas atuam.
As dificuldades são muitas, pois os orçamentos sempre são pequenos em relação aos gastos, uma micro-empresa (como é o nosso caso) não dispõe de capital de circulação; os imposto cobrados são quase os mesmos de uma grande empresa; os materiais utilizados são muito caros, sendo na maioria importados, e mesmos os nacionais exigem pesquisa para utilização dos de melhor qualidade. Ainda temos que nos defrontar com a questão do tempo que sempre é o menor possível e a exigência por parte dos órgãos fiscalizadores é do nível de uma obra planejada idealmente. Nesse ponto existe a questão do cronograma que causa sempre um grande problema de entendimento com os tecnocratas, e este é um elemento essencial para a manutenção da qualidade no processo de restauração. Dessa forma qualquer ampliação de serviços nas planilhas tem que ser prevista, sem interferência na qualidade conceituai e técnica, dentro do prazo estabelecido. Por esses motivos as formas comuns de licitação, onde vigoram o menor preço e o menor prazo, não deveriam ser correlatas no caso de obras de restauração. Deveriam, sim, ser acompanhadas de um minucioso estudo técnico de cada empresa envolvida na licitação, para que não fossem permitidas tantas complicações futuras. Exatamente para corrigir os diversos erros já ocorridos em administrações passadas, a atual administração da prefeitura de Belo Horizonte, está empregando para suas concorrências um manual de licitações, denominado 8666, onde são considerados o menor preço e a melhor proposta técnica que, uma vez analisados são submetidos a uma média ponderada, através de um gráfico preço/qualidade técnica (vertical/horizontal), onde o preço mínimo e máximo já estão previamente estabelecidos. Temos, ainda, o fato de a profissão de restaurador não ser legalizada, o que nos leva muitas vezes a nos deparar com concorrentes que, em detrimento do apuro técnico e conceitual, utilizam-se de técnicas e materiais que barateiam o custo e confundem os leigos quanto à definição do que é restaurar, dentro da filosofia básica de que deve-se recuperar uma obra de arte com o mínimo de intervenção, de modo a valorizar as instâncias físico/estética e histórica da peça ou monumento, deixando claro a qualidade da interferência do restaurador e garantindo sua conservação estrutural. Dentro disso, passaremos a historiar nossa experiência exemplificando com situações vividas nesse período de existência.
No período compreendido entre os anos de 1988 e 1992, o Grupo Oficina desenvolveu o trabalho de inventário dos bens móveis tombados pela então SPHAN promemória, hoje IPHAN, que tinha a Fundação VITAE como financiadora da maior parte dos recursos. E, ainda, dentro desse período foi realizado o inventário dos bens móveis tombados pelo IEPHA/MG, do Palácio da Liberdade, sede do governo do Estado. Considerando a especificidade do serviço e a importância de um resultado homogêneo no preenchimento da fichas, de forma a atender o padrão exigido e facilitar o trabalho de revisão. Um ou mais sócios da firma, permaneciam em campo atuando junto com o pessoal contratado. Tentaremos registrar alguns dados mais interessantes que pudemos selecionar de situações diversas vividas em trabalhos realizados em cidades do interior de Minas Gerais. Primeiramente será interessante relatar a forma de atuação empregada pela Oficina de Restauro, que se preocupa com a participação da comunidade em todo o processo de intervenção. Uma das medidas é a aproximação com os moradores do local e a apresentação, através de palestras, projeção de slides, vídeos, e visitas orientadas, sobre a importância da restauração, acentuando o papel que cada um deles deverá exercer na manutenção e preservação do seu patrimônio. Sempre que possível fazer as despesas relativas à obra no local, ou seja, tentar dispender parte dos gastos nas próprias cidades. Agora o que realmente estabelece o maior retorno é a contratação e iniciação de pessoal nativo. Por um lado amplia a possibilidade de empregos, por outro ainda introduz pessoas na prática da restauração, o que fornecerá mão de obra capacitada para a observação e identificação de problemas que possam vir a ocorrer nos monumentos, possibilitando um acionamento dos órgãos responsáveis e, eventualmente, atuações conservativas diretas, como imunizações, cuidados com goteiras, infiltrações, ventilação, permanência de insetos daninhos e etc.
Na nossa sede, em Belo Horizonte, promove-se também a iniciação, através de estágios, de pessoas interessadas em se profissionalizar e estudantes de restauração. Os estagiários têm acesso a literatura especializada, a trabalhos realizados no atelier com acompanhamento técnico e muitas vezes participam dos trabalhos em obra de arte aplicadas ao monumento. No atelier, são restauradas esculturas policromadas e outros objetos em madeira, pedra, gesso e pinturas de cavalete.
Há também uma grande demanda para elaboração de projetos para instituições públicas, associações comunitárias, etc…, em geral sem custos, pois esses órgãos, oficiais ou não, não dispõem de recursos para os mesmos. Posteriormente, ainda incorremos no risco de não poder executá-los, porque legalmente existem impedimentos para que o idealizador do projeto participe das licitações, ou também, o que é mais drástico, todo o investimento dispendido pela empresa para a execução do projeto, não é considerado como um ponto a seu favor no momento da concorrência. E, curiosamente, na maioria dos casos, a licitação é montada a partir deste projeto.
É importante também ressaltar que muitas vezes as licitações na área de preservação, são elaboradas com prazos insuficientes para o desenvolvimento dos trabalhos nas condições necessárias.
Em muitos casos, as instituições públicas, em seus editais, de licitação, exigem um capital social muito elevado, permitindo dessa forma a participação somente de grandes empreiteiros, que por sua vez, contratam as pequenas empresas realmente capacitadas para executar e responder tecnicamente por eles. Pelo fato de não termos uma profissão legalizada, deparamo-nos, na maioria das vezes, com um grande desrespeito por parte das empreiteiras, que utilizam no máximo o patamar salarial de um arquiteto recém-formado para definição dos custos de nossa mão de obra e desconsideram a nossa responsabilidade técnica na obra. Como a categoria ainda não se impôs, existem os profissionais que aceitam tais condições e dão preços muito baixos incompatíveis com a realidade empresarial e com a boa qualidade dos materiais empregados.
Para conviver com este tipo de situação, é necessária a adequação de uma série de itens. Se por um lado existe a necessidade de se trabalhar com uma grande equipe, de forma que os compromissos possam ser cumpridos em prazos tão apertados, por outro lado, defronta-se com a dificuldade de remunerar satisfatoriamente os funcionários com formação especializada, o que aumenta sobremaneira os custos do projeto. Com isto, a participação direta dos sócios é muito mais exigida, reduzindo as possibilidades de trabalhos paralelos, como é comum às firmas de outras naturezas.
Interessante, tem sido as organizações das comunidades, que angariam fundos das mais variadas formas, e assumem o financiamento dos trabalhos de restauração de seu acervo. Essas iniciativas têm acontecido de alguns anos pra cá com muita intensidade, contrariando as crises econômicas do país. A importância desse tipo de evolução comunitária é muito positiva não só como forma de organização política dos grupos, como também tem sido, em alguns momentos, essenciais à própria sobrevivência da firma, que nesses casos ainda assume o papel de “lobista” e promotor cultural.
Para exemplificar, temos o pitoresco caso das imagens da Matriz de São José em Nova Era, MG, com a sua Casa de Cultura (instituição autônoma, ou seja, não vinculada à Prefeitura ou qualquer instituição oficial) que propiciou a restauração do seu acervo, conseguindo verba através dos moradores da cidade que tinham o mesmo nome dos santos a serem trabalhados, ou através de consórcios adquiridos pelos donos de postos de gasolina, proprietários rurais e etc. Interessante também é o caso da utilização da iconografia das imagens para a obtenção dos recursos financeiros. São Sebastião, por exemplo, é invocado contra as pestes e pragas em plantações, facilitando dessa forma a argumentação para a captação de recursos junto aos fazendeiros da região.
Quanto aos aspectos técnicos, tem-se buscado atuar segundo o princípio conceitual de mínima intervenção, principalmente nos bens públicos. Já nas peças de culto, é importante sua valorização estética, de forma a não agredir a devoção dos fiéis por suas imagens. Esse respeito às comunidades não significa submissão a todas as exigências por elas solicitadas, mas sim uma adequação do objeto restaurado ao fim a que se destina. Não sem perder de vista que a cada caso, é necessária uma avaliação, enfocando aspectos variados da obra como o papel que ela exerce sobre determinado grupo, a participação caligráfica do autor, as intervenções já sofridas e etc. Parafraseando Giles Deleuze : na arte deve-se buscar a semelhança , mas esta não deve constituir um meio, caso contrário, o autor, e isto valendo para o restaurador, deixa de ter personalidade própria e passa a ser um falsificador.
Além dos aspectos religiosos, de culto, existem também exemplos interessantes como o da restauração de Museu da Assembléia Legislativa de Porto Alegre, para o qual foi solicitado pelo IBPC, um projeto de restauração das pinturas parietais de várias salas, que se encontravam completamente repintadas, e para as quais eles dispunham de uma verba bastante reduzida. Foram propostas e executadas, então, prospecções amplas, em cada uma das salas decoradas. Em uma delas, deparou-se com um barrado “Art Noveau”, no terço inferior, que contornava toda a sala. A partir da remoção da repintura de uma das paredes, buscou-se restaurar todos os resquícios ainda existentes, os quais serviram de referência para complementando de todo um quadro, em tons levemente mais claros, o que ofereceu uma leitura para o público do que teria sido a decoração original daquele ambiente.
Para este tipo de definição, o Grupo Oficina tem buscado se manter atualizado, participando de cursos, seminários e afins, no Brasil e no exterior, trazendo muitas vezes informações para adequação das técnicas utilizadas em nosso país. Como exemplos mais marcantes tem-se o da técnica da transposição de suporte em madeira (tábuas de forros), muito utilizada através do método da cera de abelha com taliscas, substituído pela técnica da parquetagem, aprendida por um dos sócios da Oficina durante um estágio no Instituto José de Figueiredo, em Portugal, e o investimento na pesquisa de eliminação de insetos xilófagos através dos gases inertes, que vem sendo desenvolvida, já em fase de experimentação, a partir dos estudos orientados que foram realizados no estágio de seis meses que uma de nossas sócias participou, no Centro de Conservación e Restauración de Madrid na Espanha.
Coexiste a preocupação de ampliar os horizontes de atuação em áreas interdisciplinares como a elaboração do vídeo “Redutos do Esquecimento” juntamente com o LAPHIS e a Século 30 ( firmas de pesquisa histórica e arquitetura de restauro); a edição do jornal Restauração, o lançamento do livro de poesias ” Obras Completas, Tomo I,” de Otávio Ramos, a parceria com o Fernando Pedro Escritório de Arte, restaurando seu acervo, e patrocinando exposições.
Atividades afins, como conferências, consultorias, aulas, textos para catálogos de exposições, embalagens de obras de arte, assessorias para adequação de museus e reservas técnicas, vêm sendo desenvolvidas pelo Grupo, respondendo a uma grande demanda de um mercado que carece de pessoal especializado. É importante ressaltar que a preocupação com as exposições e transporte de obras de arte ainda é tratada por muitos museus e colecionadores com uma certa negligência, e esta solicitação crescente de assessoria do restaurador representa um grande avanço nesta área. Para ilustrar esta atuação temos a exposição de oratórios da colecionadora Ângela Gutierrez, que não só contratou o texto técnico para o catálogo, como todo o assessoramento, as embalagens e o acompanhamento das peças, para as exposições itinerantes (no país e no exterior).
Em oposição à falta de uma política de preservação para nossos bens culturais, o panorama da restauração no Brasil atualmente é de altíssima qualidade. Em Minas Gerais, por exemplo, existe a possibilidade da utilização dos serviços do único centro de conservação e restauração do país, o CECOR, e do CETEC para a realização de análises químicas e físicas dos materiais empregados na confecção das obras de arte, proporcionando subsídios científicos para maior eficiência nos levantamentos preliminares que garantirão a qualidade e enriquecimento das propostas elaboradas pelo Grupo Oficina de Restauro.
Trabalhando em várias regiões do país, submetidos ao acompanhamento técnico/conceitua dos órgãos, observamos facilmente a variação de procedimentos exigidos, muitas vezes, deparando-nos com posições destoantes vindas dos técnicos da mesma instituição e/ou com filosofias díspares entre os profissionais da área. Diante dessa realidade, nem sempre é possível que vigore a personalidade da empresa, que está submetida ao cumprimento das determinações institucionais. Daí a extrema importância da presença da empresa privada nos encontros e congressos, que são o grande fórum de debates entre os profissionais normativos e executores.
AUTORIA: Maria Regina Reis Ramos e Rosangela Reis Costa
RELATORES: as mesmas
GRUPO OFICINA DE RESTAURO LTDA
Rua Ceará, 1593 – Funcionários – Belo Horizonte – MG – CEP: 30 150 311
Tel.FAX. (031) 227 1063
As Autoras
RAMOS, Maria Regina Reis
Formação Educacional
1975 – Curso de Restauração Fundação de Arte de Ouro Preto Prof. Jair Afonso Inácio
1979/81 – Curso Técnico de Química, Instituto de Ensino Técnico, Belo Horizonte/MG
1980 – III Curso de Especialização de Bens Móveis, CECOR/UFMG
1983 – Curso de Conservação e Restauração, Museu Nacional de Belas Artes, RJ
Formação Profissional
1976/78 – Auxiliar de Restauração, IPAC/BA
1979 – Trabalhos Atelier Particular
1981/87 – Restauradora IEPHA/MG
1987 – Sócia fundadora do GRUPO OFICINA DE RESTAURO LTDA.
COSTA, Rosângela Reis
Formação Educacional
Graduação: Curso de Belas Artes – UFMG/BH, 1978 – 1982
Pós-Graduação: Curso de Especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis – CECOR, 1986.
Curso de Especialização Latu Sensu de Cultura e Arte Barroca, 1985 e 1986.
Curso de Princípios Científicos da Conservação ICCROM, Roma/Itália, 1989.
Formação Profissional
Estágios
1978 e 1979 – Auxiliar de Restauração – IEPHA/MG
1982 – Auxiliar do Laboratório de Restauração de Papel – CECOR
1983 – Auxiliar de Restauração: Peças em Madeira – CECOR
Atividades Profissionais
1982 e 1983 – Restauração Parietal – Palácio da Liberdade, BH/MG
1983 – Restauração do Forro da Matriz de São Bartolomeu, Ouro Preto/MG – CECOR
1984 a 1988 – Contratada como restauradora para o Quadro de Funcionários do IEPHA/MG 1987 (em andamento) – Formação da Sociedade GRUPO OFICINA DE RESTAURO LTDA. (Sócio fundadora)
Publicações da ABRACOR