Inventário das imagens de Sant´Ana – Coleção Ângela Gutierrez

Adriano Reis Ramos
pesquisador e restaurador de obras de arte
do Grupo Oficina de Restauro

A catalogação de coleções de obra de arte tornou-se um procedimento obrigatório em todo o mundo, não só por propiciar o conhecimento geral das obras que as compõem, mas principalmente porque dá subsídios técnicos aos profissionais de museus e instituições que os utilizam em exposição ou publicações.
Sistematizadas a partir da realização de um inventário, as coleções só têm a ganhar após o reconhecimento de seu conjunto, adquirido com base em associação e divisão de suas características. Posteriormente, com exposições e diante de eventuais novos estudos críticos, o material tenderá inegavelmente a adquirir maior vulto.

Esculturas brasileiras

O estudo da evolução estilística das esculturas feitas no Brasil entre os séculos XVII e XIX ainda é bastante incipiente, em virtude da falta de documentação mais abrangente sobre as características dos artistas que atuaram no país nesse período, e da dificuldade de se destacar as peculiaridades de cada região e suas respectivas fases de produção.

Mas, graças ao conhecimento de obras das escolas tradicionais da escultura brasileira ― como, por exemplo, as da Bahia, de São Paulo e Pernambuco, conhecidas e amplamente divulgadas por meio de exposição e/ou publicações de museus ―, foi possível traçar a metodologia que orientou a realização do presente inventário, referente à coleção de imagens de Sant’Ana da colecionadora mineira Ângela Gutierrez.

Por outro lado, as referências obtidas com estudiosos do tema, como Orlandino Seitas Fernandes, Jair Afonso Inácio e Eduardo Etzel, possibilitaram uma compreensão mais detalhada das variações estilísticas especificas da arte escultórica produzida no Brasil. Estabeleceram-se, nessa conjuntura, as regras que determinaram a padronização das épocas e dos estilos em que as peças foram confeccionadas.

Referências tipológicas

A título de exemplificação, transcrever-se-á, a seguir, parte de um texto que publicamos na revista Barroca*, com a colaboração do restaurador Orlando Ramos Filho. De forma abrangente, nele se comentam certas particularidades estilísticas ocorridas, em períodos distintos, no universo da imaginação brasileira.

Em fins do século XVII, a estatuária produzida em solo brasileiro traduzirá os ideais estéticos renascentistas, mantendo a imobilização, a rigidez, a solidez e a estruturação geométrica do século XVI. A escultura é mais marcante que a do período anterior, mas de composição simples, estática e abaulada, quase não se observa a forma do corpo sob a indumentária. O fio de prumo desce da cabeça ao meio dos pés, e as figuras são imponentes e gordas, simplificadas e com atitudes frontais. O pequeno movimento existente está localizado nos joelhos e braços.

A partir de aproximadamente 1690, a estatuária começará a se transformar, abandonando definitivamente a sua forma hierática, hirta, para, enfim, assumir o espírito barroco. O corpo começará a movimentar-se, com o panejamento já insinuando a vibração desse estilo pela presença dos drapeados e também com a soltura no posicionamento de braços e pernas. A cabeça se torna mais proporcional; o entalhe, mais delicado; a expressão, mais emotiva, com traços fisionômicos mais suaves; a cabeleira apresenta-se perfeita em seus detalhes. As bases ainda são simples, aparecendo também em formas retangulares, e surgem os primeiros estáticos querubins, além de alguns elementos que sugerem almofadas.

Com uma defasagem de aproximadamente dez anos em relação ao litoral, o estilo joanino aconteceu de forma surpreendente em Minas Gerais, no segundo quartel do século XVIII, por intermédio de vários artistas desconhecidos, destacando-se entre eles o nome de Xavier de Brito, que, com seu inconfundível. traço, influenciou uma gama de profissionais do período. Nessa fase, são assimiladas as características mais marcantes do barroco, como a composição rica, bojuda, sinuosa em S e C, com o panejamento artificial, excessivamente movimentado em suas formas esvoaçante. As cabeleiras são elaboradas, traçadas de forma rebuscada e, às vezes, até com laços de fita. Os braços são movimentados, enquanto as bases monumentais se apresentam ornadas com querubins distribuídos assimetricamente, envoltos em nuvens e volutas. A policromia tem tonalidades fortes e é variada, mostrando farto douramento, seja no estofamento total com esgrafiados ou apenas em marchetados, bem como pastiglios, punções e rendas metálicas.

No período rococó em Minas, a partir da sexta década do século XVIII, a escultura sacra tem como principais características a leveza, a ascendência, a afetação e a assimetria. O eixo central de composição se direciona da cabeça ao pé esquerdo (raramente ao direito); o manto é diagonalizado e nas bases os querubins são colocados aleatoriamente. Na policromia, mais contida, surgem as famosas rosas de malabar, e os tons das cores se tornam mais claros.

Por fim no século XIX, com as devidas exceções dos artistas que ainda incorporavam os padrões rococós, como ocorreu com algumas peças baianas ou mesmo com José Joaquim da Veiga Valle, em Goiás, e com Mestre Valentim, no Rio de Janeiro, a escultura sacra, mais marcada pelo estilo em voga, o neoclassicismo, inspirado na arte greco-romana, reutiliza estilos anteriores sem obter resultados plásticos muito significativos…

Na representação das imagens de Sant’Ana, a cadeira que a acompanha é uma referência importante para as datações, pois a decoração de seu espaldar apresenta traços estilísticos marcantes, principalmente dos períodos barroco e rococó.

O inventário

Embora amparados por informações teóricas, enfrentamos muitas vezes situações de difícil solução, decorrentes da grande produção de obras populares em certas regiões do país, como o norte de Minas Gerais que pertencia eclesiasticamente à Bahia e teve uma produção escultórica atrelada, ao mesmo tempo, a esses dois estados. Igualmente complexas são as análises das obras produzidas pelos artistas anônimos, independentes, que atuaram em profusão tanto em Minas quanto na Bahia. Na tentativa de identificar a região de origem de algumas dessas obras, ou, ao menos, ter informações sobre sua procedência, recorremos à colecionadora Ângela Gutierrez.

Durante a realização dos trabalhos, contatou-se a dificuldade de certos artistas para assentar Sant’Ana corretamente em sua cadeira. Frequentemente, incorriam em erros anatômicos. Foi possível destacar também que poucas imagens da santa tinham semblante de uma senhora idosa. Na realidade, ela era quase sempre representada como uma mulher madura, de aproximadamente quarenta anos.

Outro fato curioso, digno de registro, diz respeito às miniaturas de Sant’Ana, muitas vezes confeccionadas para se adaptar a oratórios ou serem utilizadas como objetos devocionais independentes. Poderia também servir de mostruário, nas tendas dos artistas no período colonial, para eventuais encomendas ou mesmo serem modelo de escala para produção de obras maiores.

Quanto aos critérios adotados na conservação da coleção de que estamos tratando, cabe salientar a postura conceitual da colecionadora Ângela Gutierrez de deixar, propositadamente, nas imagens as marcas feitas pelo tempo, sem acorrer ao artifício de, em quaisquer circunstâncias, recompor as lacunas de superfície na decoração pictórica. Por outro lado, há anos a colecionadora utiliza, no polimento das obras, um verniz especial de cera de abelha com o fim de proporcionar um brilho extra às camadas pictóricas e aos douramentos.

Foram feitas fichas técnicas pelo Grupo Oficina de Restauro, informando a espécie das obras ― imaginária; sua natureza ― escultural; as iniciais do nome de sua colecionadora, Ângela Gutierrez ― AG; o grupo ao qual pertencem as imagens de Sant’Ana ― SA; o ano da execução do inventário ― 2000, e, por último, o número da peça inventariada.

No caso de peças não datadas, procurou-se determinar a época exata ou a mais aproximada de sua confecção. Quanto à autoria das obras, tentou-se identificar seus autores ou buscar uma atribuição. Da mesma forma, pesquisou-se a origem de cada peça; na ausência dessa informação, indicou-se sua procedência provável.

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