Francisco Vieira Servas - O grande artista português do barroco mineiro
Adriano Reis Ramos
Conservador-Restaurador
A obra de Francisco Vieira Servas (1720-1811), constituída por um valioso conjunto de retábulos e esculturas de alta qualidade artística, insere-se de forma significativa no cenário da arte religiosa mineira. Talvez eclipsado pelo mestre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, a obra de Servas, até o presente momento, não foi devidamente pesquisada, deixando, portanto, uma grande lacuna no estudo do movimento artístico da Capitania de Minas Gerais, no período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e a primeira década do século XIX.
O homem
Francisco Vieira Servas nasceu na Freguesia de Sam Paio de Eira Vedra, Concelho de Vieira, Comarca de Guimarães, Arcebispado de Braga, Portugal, no ano de 1720. A descoberta do ano de seu nascimento somente foi possível após termos solicitado ao Dr. Eduardo Pires de Oliveira, ilustre historiador da cidade de Braga, informações documentais a respeito de Servas ou de seus familiares. Por intermédio de consultas no arquivo da arquidiocese da referida cidade, descobriu-se sua certidão de batismo, inclusive com uma sugestiva referência a seu padrinho, Francisco Vieira da Torre, autor de dois retábulos colaterais, um altar lateral (lado do evangelho) e talha do arco-cruzeiro, com data de 1729, na Matriz de Torqueda, Concelho de Vila Real.
As primeiras notícias em terras brasileiras sobre Servas datam de 1752, em Catas Altas do Mato Dentro, onde, juntamente com Manoel Pinto, Martinho Gonçalves e Feliciano Pereira, todos na condição de oficiais entalhadores, recebeu da Irmandade do Santíssimo Sacramento os honorários referentes a trabalhos já executados na Matriz de Nossa Senhora da Conceição daquela localidade.
Em seu testamento, datado de 1809 e escrito por Joam Fernandes Rodrigues de Limae sob sua aquiescência, Francisco Viera Servas refere-se a seus pais, Domingos Vieira e Thereza Vieira, como católicos e já falecidos, e a si mesmo na condição de solteiro e sem filho algum como herdeiro.
Presume-se, contudo, que vivia com uma mulher de cor, de nome Juliana Maria d’Assumpção, com quem dividia, segundo seu testamento, “a roça situada no córrego de São Nicolau” em São Domingos do Prata. No ano de 1793, aos 73 anos, Servas e Juliana requerem à Coroa portuguesa pedido de Sesmaria(1) de meia-légua de terra no citado córrego de São Nicolau, freguesia de São Miguel de Piracicaba, cujas terras devolutas compreendiam vários matos virgens e capoeiras. Alegavam que não tinham área de cultura para seu sustento e de seus escravos e que a terra almejada não estava próxima a nenhum arraial nem capela ou rio navegável, como se fazia necessário para essa requisição.
O patrimônio de Francisco Vieira Servas ainda era composto de uma fazenda de roça com seu engenho de bois no Ribeirão do Ferreiro da Freguesia de São Miguel, hoje Rio Piracicaba, e de outros escravos além de José Angola, oficial entalhador, e Antônio Macuco, estes nomeados no testamento para receber carta de liberdade após o seu falecimento.
Sua morte ocorreu em 1811, como consta em seu atestado de óbito anexado ao testamento, registrado em Catas Altas do Mato Dentro:
Aos dezessete de Julho de mil oito centos e onze faleceu com todos os Sacramentos Francisco Vieira Servas, homem branco, solteiro, natural de Portugal e com Solene Testamento: foi encomendado, e Sepultado dentro da Capela de Sam Domingos da Prata do Arco cruzeiro para cima, e teve acompanhamento // O Coadjutor Manuel Roiz Souto
Servas era também irmão da Venerável Ordem Terceira do Monte do Carmo de Vila Rica ― onde tinha sepultura, da Irmandade das Almas de Vila Nova da Rainha, hoje Caeté, e ainda da Casa Santa de Jerusalém de Mariana. A igreja na qual foi sepultado, na cidade de São Domingos do Prata, acabou literalmente tombada, na década de 60 deste século, pelo clero local. Ainda no seu testamento são citados o seu sócio, o entalhador José Fernandes Lobo, na condição de segundo herdeiro e testamenteiro, e um sobrinho, José Vieira Servas, seu herdeiro universal, que, no ano de 1829, trabalhava como Juiz de Paz na cidade de São Domingos do Prata.
Pela análise do conteúdo de seu inventário e pela apreciação da sua escrita, parece-nos que Servas foi alfabetizado e, muito possivelmente, com alguma qualidade, haja vista que sua assinatura é feita com conhecimento da caligrafia da época, apresentando traços firmes e bem delineados.
Pesquisando documentos diretos e indiretos constata-se que Servas sempre manteve um bom relacionamento com outros oficiais qualificados, inclusive no que concerne à questão financeira, pois, em diversos documentos referentes a outros profissionais, seu nome sempre é citado na condição de credor. O renomado pedreiro e carpinteiro José Pereira Arouca, grande urbanista da cidade de Mariana, por exemplo, faleceu devendo a Servas a importância de “26 oitavas por um crédito e fora do crédito de uma corrente com seus guiares e um tronco de ferro”(2). O nome de Servas aparece em outro documento interessante, cuja apelação chegou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sobre a pendência ocorrida entre Manoel da Costa Ataíde e os louvados, João Lopes Maciel e Francisco Xavier Carneiro no trabalho de pintura do retábulo-mor da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Mariana, no ano de 1826. Na defesa de Ataíde consta o seguinte texto:
O EXAME DE NOVO FEITO, provando a paixão com que ele se fez, faz tambem lembrar o costume de que sempre se tem aproveitado os Mesarios da lrmandade para não pagarem as Obras que mandão fazer. O Mestre Entalhador Francisco Oliveira (sic) Servas, que fez de madeira o Altar Mor fallesceo sem ser pago do resto da sua Obra… (3)
Certidão de batismo
Francisco, filho de Domingos Vieira e de sua mulher Teresa Vieira, do lugar de Servas, desta freguesia de Eira Vedra, foi baptizado de minha licença pelo padre Bernardo Vieira, do lugar da Torre, feita em os vinte e dois dias do mês de janeiro de 1720. Foram padrinhos Francisco Vieira, da Torre e Custódia Gomes, solteira, do lugar da vila de Taboaças, ambos. E por virtude fiz este acento que assinei eu Abade abaixo assinado. Era ut supra
O abade Pedro da Gama Gouveia
Arquivo Distrital de Braga
Registro Paroquial
Eira Vedra (Vieira do Minho)
Misto 5, fólio 36
(Transcrição feita por Eduardo Pires de Oliveira, em fevereiro de 1996).
O ambiente artístico nas Minas do século XVIII
O período compreendido entre as décadas de 50 e 60 do século XVIII foi, sem dúvida, a fase mais enriquecedora para a confecção de retábulos e imagens religiosas na então Capitania de Minas Gerais.
A presença de artistas oriundos de Portugal do porte de Francisco Xavier de Brito, José Coelho de Noronha, Francisco de Faria Xavier, Jerônimo Félix Teixeira e Felipe Vieira, entre outros, com suas características individuais, embora alinhavadas no processo evolutivo do fazer artístico, permitiu o surgimento de vários profissionais capacitados para o exercício do ofício.
É muito oportuno o registro de que, nas primeiras décadas do século XVIII, as obras eram arrematadas por carpinteiros ou pedreiros que, por sua vez, contratavam os oficiais especializados. Figuras importantes como José Pereira Arouca, Capitão Barroso Basto, Manoel Francisco Araújo, Manoel Francisco Lisboa, apesar de não esculpirem ou entalharem, foram, durante muitos anos, os arrematantes das obras na Capitania das Minas Gerais por sua condição de figuras confiáveis à Coroa Portuguesa, e eles as repassavam aos especialistas.
Sabendo-se que os entalhadores responsáveis pela empreitada de uma obra desenvolviam seus trabalhos de maior vulto auxiliados por outros profissionais, fossem eles aprendizes ou mesmo oficiais, os quais, muitas vezes, eram seus próprios escravos, torna-se clara a visão de que os canteiros de obras do período funcionavam como verdadeiras escolas profissionalizantes, nas quais as distintas etapas de confecção dos elementos artísticos dos monumentos propiciavam aos iniciantes mais qualificados, é claro, um profundo conhecimento de todo o processo construtivo em questão.
Frequentemente, em um mesmo monumento, duas ou mais irmandades estavam construindo simultaneamente seus retábulos, com equipes distintas, que se relacionavam diariamente, contando ainda com a participação efetiva dos leigos dessas ordens religiosas nas discussões estéticas e iconográficas dos elementos que iriam decorar seus templos. Essa convivência plural teve importância significativa nos campos estilístico e teórico, não só para a formação dos profissionais que se iniciavam, mas também, para os já reconhecidos, que trocavam opiniões sobre modelos, técnicas e emprego dos materiais. Dois grandes exemplos de obras que se assemelham às escolas profissionalizantes de nosso tempo, foram as decorações da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Catas Altas do Mato Dentro, e da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté, onde, sem sombra de dúvidas, Francisco Vieira Servas atuou. Essas duas igrejas, pela época de sua construção e em função dos trabalhos de madeira ali exercidos, marcaram definitivamente a conduta de alguns profissionais do porte de Servas e de Antônio Francisco Lisboa.
Quanto à organização dos oficiais entalhadores e escultores ― que, em Lisboa, era controlada pela Casa dos 24, atuante desde o século XV ―, na Capitania os artistas estavam submetidos às licenças expedidas pelos Senados das Câmaras após exame de aptidão. Os chamados “ofícios mecânicos”, como se vê nos registros coloniais, só poderiam ser exercidos, legalmente, por “operários” aprovados em exames, após os quais poderiam receber as indispensáveis provisões. E essas provisões, para terem validade, deviam ser levadas ao Senado da Câmara, a qual expedia “carta de confirmação” e licença. Anualmente, eram eleitos pelos operários provisionados, e perante o Senado da Câmara, dois juízes e um escrivão. Cabia aos primeiros examinar os candidatos e, de acordo com a aptidão dos mesmos, fornecer-lhes, ou não, a certidão.
Sabemos que, nas exigências que constam do Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da mui nobre cidade de Lisboa, de 1572, no intuito de regularizar a profissão do imaginário, é necessária a confecção de três tipos distintos de figura, que vêm a ser um Cristo, de 60cm de altura, posto na cruz com seu calvário, uma imagem de Nossa Senhora, do mesmo tamanho, e um Menino Jesus no colo da Mãe. Possivelmente, outras iconografias poderiam ser aceitas, mas, de qualquer forma, a apresentação de duas figuras masculinas, nas fases infantil e adulta, e de uma feminina, já mulher, toda recoberta por indumentária composta geralmente de túnica, manto e véu, já é o bastante para atestar a potencialidade de um artista.
…e a que quiser examinar de Imaginária ou escultura de madeira, fará um Cristo de três palmos de comprido posto na cruz com seu calvário….
…e também fará mais uma imagem de N. Sra. com o menino Jesus no colo, a qual será do mesmo tamanho do Cristo, lavrada toda em redonda…
…nas quais duas peças se mostrará a beleza dos rostos, formosura de mãos, boa ordem nas posturas e boa invenção no pano e cabelos. Deverão ser feitas sem presença de modelo, nem outra coisa por onde contrafaça….
…e depois de feitas as imagens os examinadores mandarão chamar quatro oficiais imaginários que com eles a verão, e achando que tem as partes que atrás se aprontam passarão ao dito oficial sua certidão para lhes ser feita sua carta como atrás está dito…
Ao oficial de ensamblador era apresentado o risco de uma cômoda ornada “torta e retorta por todos os três lados”, da qual devia tirar a “planta baixa”, e fazer todos os moldes. Exigia-se-lhe também a feitura de uma cadeira em uso na época.
Ao oficial de entalhador requeria-se a execução de um friso de cinco palmos de comprido e um pilar de seis palmos de comprido, sendo estas peças “muito bem ordenadas e lavradas ao romano”, um capitel coríntio e um desenho das cinco ordens (toscana, Mica, jônica, coríntia e compósita) desde a cimalha “emthe o seu emvazamento”(4).
A paternidade da obra de arte
A questão da atribuição de uma obra de arte a um determinado artista no período colonial é altamente complexa e plena de dificuldades, pois, comumente, a execução de um elemento artístico era resultado da ação de diversos artífices, que, como Servas, associavam-se a colegas entalhadores ou a oficiais, os quais, ao longo do tempo, iam absorvendo o estilo, a ponto de muitas dessas obras serem trabalhadas pelo mestre somente na fase de acabamento, momento em que todas as etapas preliminares estavam devidamente cumpridas por seu ateliê.
Nesse cenário, o mestre dirige a equipe, distribui o trabalho, orienta os entalhadores quanto às ideias principais e lhes transmite os pormenores da trama iconográfica que, usualmente, era discutida com os mesários das irmandades religiosas que tinham amplo conhecimento de estampas de diversificadas edições da bíblia ou de gravuras religiosas. É atribuição do mestre, ainda, o fornecimento do risco e apontamentos, provavelmente muito minuciosos que, certamente, continham as medidas, o perfil, a postura e os traços principais das figuras. Por conseguinte, o mestre supervisiona a execução e, em algumas ocasiões, como já foi dito, trabalha ele próprio o cinzel e o malho.
No processo de determinação da paternidade de uma obra de arte, o estudioso pode incorrer em erros de avaliação, conformando-se tão somente com uma mera semelhança entre figuras, sem considerar a equipe envolvida em todo o processo de execução, ou por se deter apenas em uma nota de pagamento, inclusive nominal, a determinado artista. Para uma avaliação mais segura, é imprescindível a minuciosa análise do bem artístico, tendo em conta que o documento comprobatório de um ateliê nem sempre é a garantia da realização do trabalho pelo artista titular do mesmo. Os excessos de encargo, a confiança nos colaboradores, as inevitáveis ausências e enfermidades ou seu envelhecimento são fatores determinantes para crermos que nem sempre o oficial titular de um canteiro de obras ou de um ateliê atuava diretamente em todas as frentes do trabalho.
Um exemplo incontestável dos perigos que se pode incorrer na identificação da autoria de uma obra diz respeito à porta cata-vento da Sé, de Mariana: Manoel Francisco de Araújo, verdadeiro arrematante do serviço, passou a Servas um documento ― semelhante ao que hoje conhecemos como “carta de crédito” ― para que recebesse do “Fabriqueiro de Camargos” uma dívida, e esse pagamento, por sua vez, quitaria os trabalhos executados por ele em dois retábulos na igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto.
No ano de 1796, aparece no Livro de Despesas da Sé o nome de Servas reivindicando o pagamento de 105$450 da porta cata-vento. O valor solicitado é, de certa forma, significativo, uma vez que corresponde à quinta parte do preço combinado por Servas para a confecção do retábulo do evangelho da igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará. Esses retábulos, estabelecidos por Araújo na igreja de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto, em número de seis, foram ajustados no ano de 1784. Entretanto, somente dez anos depois, ou seja, em 1794, é que dois foram definitivamente assentados, ficando os outros apenas com as peças preparadas.
No que concerne ao envelhecimento do artista, quando, inevitavelmente, diminui a sua disposição física para grandes arroubos no ofício, sabemos que Servas aos 86 anos de idade assinou contrato para a confecção do retábulo-mor do Carmo de Sabará, juntamente com seu companheiro José Fernandes Lobo, o qual, a nosso ver, foi quem realmente executou a obra. Esse sócio de Servas, natural de Caeté e falecido no ano de 1837, tinha como residência, no ano de elaboração de seu inventário, a mesma fazenda de Servas em São Nicolau, na localidade de São Miguel de Piracicaba.
Podemos, dentro desse contexto, supor que Francisco Vieira Servas tenha se tornado uma espécie de empresário, que se aliava a outros artistas para a viabilização de suas empreitadas. E, comprovadamente, ensinava, às expensas de pessoas da sociedade local, a profissão de entalhador para mulatos nascidos livres ou escravos alforriados, como reza o documento colhido por Judith Martins em seu Dicionário de Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas Gerais: “Silvério Dias, 1815, Natural de Mariana, aprendeu durante sete anos, à custa de sua senhora, D. Ana Pulcheria de Queiroz, com o fulano ‘Servas’ o ofício de entalhador”. Também deve ser acrescentado que oficiais do gabarito de Servas compravam escravos e os treinavam devidamente para trabalharem em seus ateliês. Esses escravos, de acordo com inventários da época, acabavam por ter alto valor financeiro em função de sua habilidade manual para as artes.
Ainda é necessário que levemos em conta, nesse tema, as múltiplas possibilidades de um artista no que concerne ao universo de criação de suas figuras. As questões iconográficas ou mesmo de sexo e idade impelem aquele mais gabaritado a ampliar seu “leque” de diversificação das expressões, dificultando ainda mais a identificação de uma obra por superficiais análises comparativas.
Contudo, nada impede a percepção das características inerentes a um artista ou a um grupo de artífices ou a uma determinada região. Os traços pessoais se espelham não só na mensagem mais abrangente da composição final de seu produto, (faces e posturas das figuras), mas também nas particularidades do artista incutidas em pormenores, como na resolução dos olhos, narizes, bocas, orelhas e formatos das unhas.
Na decoração interna da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Mariana, é onde reside a verdadeira concepção dos retábulos e esculturas de Francisco Vieira Servas. Ali se podem visualizar a estrutura formal de seus retábulos compostos da famosa arbaleta, de rocalhas e elementos fitomorfos característicos, suas variações anatômicas, seu controle para a disposição das figuras em pontos distintos do retábulo e ainda os detalhes fisionômicos dos seus pares de querubins.
A partir das obras comprovadas de sua autoria, e também das advindas de atribuições, foi possível exercer análises comparativas na expectativa de detectar semelhanças entre retábulos, entalhes, esculturas que, mesmo passíveis de algum equívoco, abrem perspectivas para novos estudos que porventura venham a ser realizados.
Influências e associações
Instalado em solo mineiro, muito provavelmente a partir de 1751, mais especificamente na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Catas Altas do Mato Dentro, Servas trabalha sob o comando do entalhador Manoel Valente que, após receber os honorários de boa parte dos serviços, vem a falecer no ano de 1751, deixando por fazer vários trabalhos contratados. Posteriormente, em 1753, entra em cena o entalhador e escultor Francisco de Faria Xavier que, a nosso ver, vai influenciar significativamente o que viria a ser a obra de Servas no que concerne às características tanto estilísticas quanto anatômicas.
Sobre Francisco de Faria Xavier, apenas temos conhecimento desse contrato acima mencionado e de um outro para execução de um retábulo na Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara, com data de 1744 ― o qual acreditamos tratar-se do altar dedicado a Nossa Senhora do Carmo. Sua obra, ainda pouquíssimo estudada, prima pela qualidade anatômica das figuras, altamente expressivas e de rara beleza, como pode ser visto nos entalhes da decoração parietal da capela-mor da Matriz de Catas Altas.
Mais tarde, nos idos da década de 60 do século XVIII, foram feitos alguns trabalhos que compõem a decoração da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté, que, apesar de totalmente destituídos de documentação, atribuímos com certa propriedade a Francisco Vieira Servas, pois ali começam a despontar algumas das suas características escultóricas mais marcantes.
A presença de José Coelho de Noronha em Caeté é atestada documentalmente em 1758, onde executa o retábulo-mor, e, mesmo sem provas documentais, atrevemo-nos a dizer que são de sua autoria os dois retábulos do cruzeiro que, inegavelmente, pertencem à mesma safra daqueles da Sé de Mariana.
A confecção dos retábulos do monumento de Caeté, em número de nove, se estendeu por vários anos e esse trabalho, juntamente com o da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Ouro Preto, assinalou as primeiras manifestações do rococó na Capitania ainda que de forma tímida. Não temos subsídios para afirmar que Servas tenha recebido alguma influência estilística de José Coelho de Noronha, mas podemos presumir que ambos trabalharam na decoração interna da Matriz de Caeté. Contudo, as figuras de anjos esculpidas por Noronha, muito características pelos seus sorrisos, de forma alguma foram assimiladas por Servas em suas obras comprovadamente conhecidas.
Muitos outros trabalhos atribuídos por especialistas a Francisco Vieira Servas merecem destaque, como são os retábulos da capela do Seminário Menor de Mariana, do pequeno retábulo da prefeitura de Sabará e de mais outros dois pertencentes à Matriz de Itatiaia, distrito de Ouro Branco. Existem outros, principalmente na região do Vale do Rio Piracicaba, em Minas Gerais, que ainda não foram devidamente estudados, mas que, por suas características tipológicas, podem ser classificados como da escola ou mesmo saídos do ateliê de Servas.
Em relação às parcerias, deparamo-nos com as dificuldades impostas pela ausência de documentação, restando-nos as comparações estilísticas e, também, um estudo atento sobre a localização dos artistas em um determinado momento, onde duas ou mais obras de grande importância estavam sendo executadas. Nesses casos, podemos contar com a possibilidade de convivência profissional entre eles, em que seus ateliês podiam manter algum tipo de intercâmbio técnico, com trocas de serviços ou até terceirizações de algumas partes dos trabalhos.
A presença de Luís Pinheiro como executor dos retábulos do cruzeiro da igreja de São Francisco de Assis, em Mariana, no ano de 1777, cujos querubins dispostos nas bordas do camarim assemelham-se demasiadamente aos da fatura de Servas, que, nessa data, atuava na igreja de Nossa Senhora do Rosário na mesma cidade, leva-nos a pensar na possibilidade de troca de serviços entre as equipes ou mesmo de sociedade entre esses oficiais.
Outro contato que nos interessa profundamente no universo das relações de Servas diz respeito a João Antunes de Carvalho, responsável pela execução do retábulo-mor da Basílica do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas do Campo, e também pelo retábulo de Nossa Senhora do Rosário, datado de 1758, em Itaverava, cuja presença de Servas foi novamente detectada por análises comparativas.
Por fim, assistidos documentalmente, podemos afirmar a condição de sócio de Francisco Vieira Servas mantida por José Fernandes Lobo, oficial natural de Caeté, tanto na igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará como na fazenda de São Miguel do Rio Piracicaba onde, muito provavelmente, dividiam um ateliê.
Características tipológicas de seus retábulos
Francisco Vieira Servas chegou ao Brasil como um oficial tipicamente barroco, preparado para a execução de obras elaboradas ao mais puro gosto joanino. Entretanto, o ambiente artístico vivido na Capitania fez com que assimilasse a introdução do espírito rococó e dele tirasse grande proveito, mais especificamente na construção de seus retábulos, aqueles executados mais ao fim do século XVIII.
Talvez, sem as transformações ocorridas na Capitania, Servas fosse lembrado apenas como um outro artista português do período barroco. Contudo, uma vez envolvido no processo evolutivo que originou os chamados “novos templos” construídos no território aurífero, é digna a constatação de que ele absorveu as novidades estéticas que vieram mudar o panorama da arte exercida nas Minas de então, que, por sua peculiaridade, equivocadamente ou não, é conhecida internacionalmente como “barroco mineiro”.
No que concerne aos retábulos elaborados por Servas, aproveitamos aqui um depoimento da historiadora Myriam Ribeiro de Oliveira(5), que diz:
…a mais significativa de suas características é a presença no coroamento de um motivo de perfil sinuoso, em forma de arbaleta, completado por imponente sanefa, e cujas volutas laterais parecem impulsionadas para a frente por flamejantes rocalhas. O motivo descrito insere-se em uma arcada côncava em arco pleno, dividido em secções correspondentes à estrutura do suporte. Esses são constituídos geralmente por colunas retas estriadas na parte externa e quartelões na parte interna…
Não se pode afirmar que foi Servas o único entalhador a utilizar, no coroamento, esse gracioso elemento; contudo essa resolução tornou-se a marca registrada de seus retábulos, tendo sido empregado até o final de sua vida em diversos exemplares espalhados por variados monumentos mineiros a partir do risco do retábulo-mor da Matriz de Santo Antônio, em Itaverava, que se encontra no Arquivo Colonial de Lisboa.
O retábulo-mor do Santuário de Bom Jesus de Matozinhos, em Congonhas do Campo, contratado a João Antunes de Carvalho e executado de 1772 a 1773, também apresenta a arbaleta como resolução de seu remate. Nesse período, Francisco Vieira Servas encontrava-se em plena atividade na igreja de Nossa Senhora do Rosário de Mariana, utilizando a arbaleta nos três retábulos. No ano de 1777, Servas recebeu 85 oitavas pela feitura de quatro anjos grandes para o Santuário de Congonhas, onde também atuava Luís Pinheiro de Souza. Esses quatro anjos, na verdade, são os dois do arco-cruzeiro e os que encimam a arbaleta do retábulo-mor, como poderá ser visto na documentação fotográfica.
Uma teoria que aventamos, tanto para o retábulo de Congonhas quanto para o de São Pedro da Sé de Mariana, é que a arbaleta poderia ser embutida sobre o tradicional remate em arco pleno, propiciando significativa elegância ao coroamento. No caso da Sé de Mariana, o retábulo definitivamente não tem nada a ver com a decoração em arbaleta e com os dois anjos laterais, pois o ele se enquadra nos modelos utilizados no período joanino, estilisticamente de composição mais pesada. Porém, a presença da arbaleta ladeada pelos dois anjos na parte superior sugere a existência de dois estilos distintos, sobrepostos, muito possivelmente porque, após a conclusão do retábulo, foi contratada a adaptação desse elemento, quem sabe ao próprio Servas, com o intuito de realçá-lo. Nesse contexto, podemos também conjecturar a possibilidade de Servas ter participado da execução do retábulo de Congonhas com João Antunes de Carvalho.
Ainda sobre as características tipológicas de Servas, podemos observar em seus retábulos os frisos curvos combinados com rocalhas, além da sequência em motivos fitomorfos que decoram seus quartelões: camélia, bugarim (rosa de malabar) e flores miúdas. Vários outros elementos decorativos, encontrados em diversos retábulos em estudo, são constantes em outros comprovadamente de Servas, nos quais se destacam a parte superior dos nichos em formato de “coifa”, os sacrários centrados em coração com três artérias superiores, estando a do centro encimada por cruz e lírio, e ainda o formato das mesas, que se apresentam abauladas nas extremidades.
Servas também utilizou exaustivamente figuras de anjos para ocupar os espaços superiores dos retábulos-mores e a área central dos arcos do cruzeiro. Geralmente esses anjos ladeavam carteias entalhadas ao mais puro gosto rococó e querubins também podem ser vistos em diversos retábulos entalhados por ele. Talvez por razões financeiras (o custo aumentava com a presença de figuras), nosso artista tenha passado a adotar apenas a arbaleta em seus coroamentos, sem as imagens, como ocorreu na Matriz de São José da Lagoa, em Nova Era, e na Matriz de São Gonçalo, em São Gonçalo do Rio Abaixo. Esses retábulos, apesar de manterem toda sua elegância e leveza, já não trazem as figuras celestiais. Em alguns, como o da capela-mor do Carmo de Sabará, foram adaptados dois ou mais querubins na parte superior dos quartelões, distribuídos de forma extremamente modesta em relação às dimensões do retábulo. A causa dessa visível alteração pode ser atribuída, como foi dito acima, às dificuldades orçamentárias, pois a execução de efígies torna a empreitada mais dispendiosa, ou, muito provavelmente, pelo excesso de idade de Servas que, no período da confecção desses retábulos, já havia passado a idade de 70 anos. As figuras saíram de cena para dar lugar apenas aos motivos decorativos que, aliás, vão ser mantidos por seus seguidores até meados do século XIX, como pode ser visto na igreja de Nossa Senhora do Rosário, de São Domingos do Prata, e na Matriz de Santana, em Alfié, somente para citar alguns exemplos.
Características estilísticas de suas esculturas
As esculturas produzidas por Francisco Vieira Servas em solo brasileiro, muito embora, em sua maioria, pertencentes ao período em que predominou o gosto rococó ― já totalmente incorporado à decoração dos novos templos da Capitania a partir da sexta década de setecentos ―, ainda se enquadram tipologicamente nos padrões empregados no estilo joanino, cuja composição apresenta-se bojuda, o panejamento destaca-se pelo excesso de movimentação e o eixo de prumo, ao dividir sob nossa orientação a imagem, passa pela cabeça e por entre os pés, que, aliás, se mostram parcialmente cobertos pela vestimenta. Entretanto, essas características básicas do barroco, com o passar dos anos, começam a conviver com aspectos morfológicos do rococó que podem ser observados em muitas das suas obras, nas quais a composição, ainda volumosa, já assimila alguma leveza, e a indumentária, apesar de movimentada, tende à diagonalização, seja na totalidade da face posterior do panejamento, seja na parte frontal, mais especificamente na altura da cintura, onde a solução adotada por Servas é a de terminar o manto em formato triangular.
Nesse caso exclusivo da triangulação, podemos conjecturar que tal mecanismo de resolução do panejamento foi herdado por Servas de outro grande artista atuante na matriz de Catas Altas do Mato Dentro e na matriz de Santa Bárbara em meados do século XVIII, o entalhador e escultor Francisco de Faria Xavier, já citado anteriormente.
Por outro lado, se levarmos em conta as imagens feitas sob encomenda de leigos, geralmente confeccionadas em menores dimensões, executadas mais livremente, de acordo com a própria vontade do artista, encontraremos obras de composição mais leve, influenciadas pelo estilo rococó, ao contrário das peças maiores, solicitadas para os templos, a partir de prévias discussões iconográficas com os as irmandades, advindas das estampas do período barroco, que, ainda sob o comando do Concílio de Trento, dominaram em profusão toda a colônia durante o reinado de D. João V, isto é, de 1706 a 1750.
Parece-nos, enfim, que as imagens de composição barroca eram mais apropriadas para ocupar os grandes nichos dos retábulos, com a função de serem contempladas à distância, enquanto os vazados e vazios das peças rococós, menos volumosas portanto, se adequavam mais ao contato direto com o espectador.
Acreditamos que Servas especializou-se na resolução dos coroamentos de retábulos e tarjas centrais do arco-cruzeiro, com a confecção de pares de anjos para ocupar essas grandes áreas dos monumentos erguidos ou continuados na segunda metade do século XVIII, geralmente ladeando carteias feitas ao mais puro gosto rococó. Esses anjos eram confeccionados, basicamente, de duas formas: os primeiros apresentam pernas flexionadas com panejamento na altura do joelho, em corte liso, acompanhando a perna até a altura do tornozelo, mas somente por detrás; enquanto os segundos têm a perna direita estirada, com o panejamento envolvendo-a integralmente até o pé.
Outra determinante dos panejamentos elaborados por Servas é a diagonalização da parte superior, de forma que apenas um dos ombros é coberto e outro se apresenta desnudo. Ainda pode ser observada, lateralmente, a resolução do entalhe em zigue-zague.
Todos os panejamentos são direcionados para um lado, como se ali estivessem expostos a um sopro de vento. Sua indumentária ainda comporta significativos recortes triangulares ou mesmo retangulares nas extremidades dos mantos, que podem ser vistos em praticamente todas as suas obras, e que se apresentam como dobras cuidadosamente elaboradas.
Em alguns casos, como na igreja de Nossa Senhora do Rosário, de Mariana, os anjos estão descalços, sendo que em muitos outros monumentos as figuras se apresentam calçadas com botas tipo borzeguim, com cano superior resolvido em formato triangular.
Ainda nos anjos maiores, é bastante visível a presença de um triângulo demarcando o pescoço que, na parte inferior, é interrompido por traço curvo, de onde desce uma linha vertical até a altura da barriga.
Nos anjos menores da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, de Caeté, nos retábulos dedicados à São Miguel e à Nossa Senhora da Conceição, os pescoços dos anjos menores são resolvidos da mesma forma que os dos querubins por ele esculpidos, ou seja, em linhas curvas, sugerindo pequena papada.
Quanto aos querubins, vale lembrar que seus rostos são mais gordos, sendo que as bochechas são demarcadas por duas bolas mais salientes, enquanto o queixo é determinado por uma bola de menor tamanho.
Em suas aulas, ministradas na Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP), o restaurador Jair Afonso Inácio ensinava que as características mais marcantes das figuras de Servas podem ser observadas na simetria da face, na igualdade entre as larguras da boca, narinas e olhos e, ainda, na resolução do cabelo com topete fortemente ondulado.
Podemos também acrescentar às considerações do professor Jair Inácio a composição de formato quadrado dos rostos das imagens, ressaltando mais um outro detalhe muitíssimo marcante, que é a terminação do cabelo em formato de vírgula sobre a testa.
Notas
(1) ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO. Livros de Sesmarias.
(2) MENEZES, Ivo Porto de. V Anuário do Museu da Inconfidência: José Pereira Arouca, 1978.
(3) AÇÕES CÍVEIS, 2° Ofício. Notas extraídas dos autos dos arquivos de Mariana, copiados pelo especialista em Belas Artes Antônio Ferreira de Morais. Pasta da Igreja de São Francisco de Assis de Mariana, arquivo da 13′ CR, IPHAN/MG.
(4) LANGHANS, Franz Paul. As corporações dos ofícios mecànicos – Subsídios para a sua história. Lisboa.
(5) OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. Escultura colonial brasileira – Um estudo preliminar. In: Revista Barroco Mineiro, n. 11.
A pesquisa sobre a obra de Francisco Vieira Servas, aqui apresentada em parte, foi realizada graças à colaboração das restauradoras do Grupo Oficina de Restauro, Carla de Castro Silva, Maria Regina Ramos e Rosangela Reis Costa; da colecionadora Angela Gutierrez; do historiador Célio Macedo Alves, e de Elvécio Eustáquio da Silva, presidente da Casa de Cultura de Nova Era, MG.