Lançamento do livro sobre Vieira Servas
O Escultor Francisco Vieiras Servas, considerado, ao lado de Aleijadinho e Ataíde, um dos criadores do Barroco Mineiro, tem sua obra analisada por Adriano Ramos, em livro que será lançado amanhã.
João Paulo
Jornal Estado de Minas
“Francisco Vieira Servas e o Ofício da Escultura na Capitania das Minas do Ouro”
Francisco Vieira Servas, Português, nascido em 1720, morto aos 91 anos, em Minas Gerais. A partir de agora, com o belo trabalho de Adriano Ramos, que será lançado amanhã, no Museu Histórico Abílio Barreto, o artista não pode ser apenas um verbete lateral na história da arte brasileira. A monografia Francisco Vieira Servas e Ofício da Escultura na Capitania das Minas do Ouro, editada pelo Instituto Cultural Flávio Gutierrez, estabelece urna nova forma de compreensão do barroco, e uma ampliação no quadro de seus construtores. O que era um lampejo de gênio individual se torna urna obra de civilização coletiva. A arte que parecia uma mágica na mão de iluminados, se revela um fazer que tem regras e determinações materiais, técnicas e econômicas. No terreno onde esplendiam poucos gênios, se estabelece uma corporação de criadores.
O maior dos nossos motivos de orgulho intelectual, afetivo e espiritual, o barroco mineiro ainda é um enigma para a maioria dos brasileiros. Foi primeiro lugar pela definição estética, que funde elementos europeus com características exclusivamente nativas, gerando uma explosão de criatividade absolutamente única, que mistura períodos históricos, como o estilo joanino e o rococó. Em seguida, pelo diálogo que estabelece com um momento decisivo da história brasileira, com seus crimes e castigos coloniais. E, ainda, pela técnica e labor de ofícios, que iam da escolha da madeira ao detalhe mais sublime das esculturas, entalhes e traços arquitetônicos. O século XVIII, em Minas Gerais, viu surgir e chegar ao seu apogeu uma visão de mundo, que se realizava através da arte.
Neste contexto, o maior nome do barroco, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, aparece como incontestável gênio da raça. Sua estatura, no entanto, não pode anular os outros criadores nem impedir que se veja o panorama do estilo. Obra de construção coletiva, o barroco mineiro foi feito por mãos brasileiras, africanas e européias, que estabeleciam parcerias nas funções e ofícios, com sua peculiar divisão de trabalho. É neste contexto que o nome de Francisco Vieira Servas surge como um dos artistas mais importantes do século XVIII brasileiro. Entender e se extasiar com a beleza de suas criações é utilizar uma outra chave de compreensão da arte.
Esta talvez seja uma das maiores contribuições do estudo de Adriano Ramos, restaurador e um dos fundadores da Oficina de Restauro, de Belo Horizonte: descrever “por dentro” a criação das obras. O livro nos dá acesso a um mundo de artistas, mas também de artesãos, escravos, encomendantes de obras, burocratas, autoridades de ordens religiosas. E nos ajuda, ainda a compreender a multiplicidade de labores envolvidos na feitura das obras. O estudo, ainda inacabado, da criação que jorrou do barroco mineiro, gerou contradições insuperáveis, como a atribuição equivocada de obras a seus possíveis autores. Aleijadinho não seria humanamente capaz de produzir tudo que a ele atribuem. Só o fato de haver a dúvida, mostra o alto nível da criação estética, o que prova a diversidade de autores. Servas é um destes mestres que aumenta o espectro de maravilhas do barroco mineiro.
Entre as novidades da pesquisa de Adriano Ramos está a revelação de que os artistas do barroco mineiro, diferente do que espalhou a visão romântica da história, trabalhavam em boas condições profissionais, participavam de concorrências públicas e até terceirizavam fases da produção. A monografia revela, por exemplo, manuscritos que mostram Servas e Aleijadinho disputando a realização de uma obra. Em outro documento, o pintor Manuel da Costa Ataíde aciona a Irmandade do Rosário, em Mariana, pelo atraso de pagamento e cita colegas que foram vítimas de calotes, entre eles Francisco Vieira Servas.
O livro, resultado de anos de pesquisa, realiza um passeio pelas igrejas de Minas, passando pelas cidades de Mariana, Caeté, Nova Era, Barão de Cocais e Sabará. Mas o empenho do pesquisador o levou ainda a Portugal, à região do Minho, onde nasceu Servas. O cuidado do texto e o capricho das fotografias de Eugênio Sávio, valorizados pelo projeto gráfico capaz de fazer brilhar tanto a visão de conjunto como o detalhe, fazem de Francisco Vieira Servas e Ofício da Escultura na Capitania das Minas do Ouro um estudo ao mesmo tempo pioneiro e definitivo. Se aos especialistas o nome e a obra de Servas são elementos já conhecidos, a expansão a um público maior é mais uma realização do barroco. Esta arte inspirada pelos céus, mas que só ganha vida em meio à gente comum.
Entre os objetivos mais fortes da monografia sobre Francisco Vieira Servas estão a reparação da injustiça histórica com sua arte e a apresentação de obras de autoria do escultor e entalhador, muitas delas conhecidas pela presença nas mais importantes igrejas de Minas. Mas, talvez, estes sejam os motivos mais visíveis e a conseqüência imediata da leitura. O que vem depois disso tem tanta significação para a arte e a cultura brasileira como a revelação de um artista genial. Trata-se do estudo circunstanciado da produção artística do barroco mineiro, com elementos que vão da divisão de trabalho ao financiamento das obras, passando pela atenção aos detalhes só perceptíveis aos olhos mais treinados e atentos.
No primeiro capítulo do livro, Ambiente Artístico e Social na Minas Setecentista, o autor analisa as principais vertentes do barroco, como a teatralidade, o esplendor religioso e o entusiasmo artístico, que se apresentam num momento de intensas e conflituosas relações sociais. Com isso, o que era inspiração européia ganha feição nacional. Mais que brasileiras, as transformações no barroco são mineiras, pelo dinamismo da sociedade local, bem diferente do que acontecia no litoral do Brasil. Foi este cenário que permitiu o florescimento da arte de gente da terra, a partir do trabalho de portugueses como Francisco Xavier de Brito, José Coelho de Noronha e Felipe Vieira.
A própria feitura das obras constituía um momento de aprendizagem, como se fossem escolas profissionalizantes. O profissionalismo estava presente em vários momentos, como na certificação dos oficiais, nas concorrências públicas e nos processos de terceirização de partes das obras, que muitas vezes eram feitas por encomenda, longe dos canteiros principais.
O pesquisador Adriano Ramos, no capítulo que trata da regulamentação dos ofícios mecânicos, explica de que forma á provisão para realização dos serviços dependia de exames, que deviam ainda ser validados pelo Senado e Câmara, mostrando a importância deste trabalho no contexto social da época. As disputas corporativas eram significativas e, muitas vezes, colocavam em posições opostas trabalhadores mais ou menos preparados, como entalhadores e marceneiros.
No capítulo seguinte, Estilos em Vigor no Tempo de Francisco Vieira Servas, há um debate estético sobre o barroco mineiro e sua relação com outros estilos do período, como o rococó, o barroco joanino e o gótico. Adriano Ramos analisa ainda a imaginária de Servas, destacando o uso do panejamento, deslocamento do centro de equilíbrio e da tendência ao movimento.
Além da obra, a vida de Servas tema de estudo do autor, que levantou documentação sobre o batismo do artista em Portugal, sua viagem para o Brasil e seu testamento. Solteiro, Servas deixa propriedades para um sobrinho em seu testamento, que é reproduzido no livro. No capítulo sobre paternidade da obra de arte. Adriano Ramos atenta para os riscos de atribuição que levem em conta apenas documentos contábeis, já que era comum a transferência de obras contratadas para outros empreiteiros. Além disso, mesmo o estudo estilístico é complexo, já que, muitas vezes, as obras eram realizadas por várias mãos, em etapas independentes, cabendo ao artista apenas o arremate do serviço. Por isso, o autor dá destaque à idéia de um trabalho em parceria, autênticas equipes que se formavam em torno da encomenda de serviços de maior vulto.
Capítulos sobre os retábulos, com identificação técnica e estilística do trabalho de Servas, e acerca das esculturas do artista encerram a obra, que traz ainda um texto do historiador português Eduardo Pires de Oliveira, da Universidade de Braga. De Servas, anota Pires de oliveira que é “o conhecido entalhador que hoje admiramos na imaginária e nos retábulos desse Minho além-Atlântico, que é o território de Minas Gerais”. O livro e a pesquisa de Adriano Ramos fazem jus à sua origem de restaurador. Servas sai de seu livro com todas as camadas de sua autenticidade recuperadas, sem deixar de lado os elementos do tempo que lhe marcam de forma necessária. História não existe para anular a distância, mas dar mais sentido ao tempo.